Ainda estou aqui, 2024
Direção> Walter Salles
Existe uma dificuldade geracional de imaginar como foram os tempos da Ditadura Militar aqui no nosso país. Por enquanto, ainda se fala deste tempo nos livros de História do Brasil. Um período que se encerrou formalmente em 1985 parece fugir da nossa memória como povo. E como isso simplesmente impede de seguirmos em frente…
Nos EUA, revivem sem cansar os tempos da Guerra Fria ou do incidente que marcou o início da chamada Guerra ao Terror, nos filmes, nas séries, em livros. A memória do povo estadunidense está sempre sendo revivida, reanimada e exportada na indústria cultural do cinema de Hollywood. Na Europa, os horrores da 2. Guerra Mundial estão bem vivos e são sentidos pelas sociedades, com consequências visíveis e emplasturadas nas obras de arte, da pintura ao cinema. A cultura reflete a estrutura e a infraestrutura social, de maneira que é fácil evocar figuras como Hittler, Mussolini, Churchill, Stalin. Quantos filmes contando essas histórias já foram premiados no Oscar, consagrados nas mãos de diretores famosos de cinema?
Mas ainda é difícil ouvir ‘da boca do povo’ falar sobre os horrores trazidos pelo General Médici, a tortura, a perseguição, a violência, os grupos de extermínio de índios, negros e pobres pela polícia, a fome trazida pelo seu governo. O medo no rosto das pessoas, o desaparecimento sem causa e sem explicação no sumidouro dos DOPS, das mutilações praticadas por oficiais do SNI. Temos filmes, livros, séries na Globoplay, depoimentos, comissões que falam, escancaram o nosso passado terrível e banhado de sangue. Mesmo assim, não é suficiente. Ainda há negacionistas da Ditadura Militar no Brasil. Pessoas que dizem que nunca existiu, pois havia eleições, e onde já se viu uma ditadura com eleições? Que era tudo muito seguro e maravilhoso nos anos de chumbo, você só não podia ser comunista ou falar o que queria ou ter um vizinho que ouvia discos do Gil ou do Caetano ou estudar sociologia na USP…
Talvez exista um estadunidense que diga que o atentado de 11 de setembro seja uma farsa, ele poderia até negar que as Torres Gêmeas em Manhattan caíram após um atentado terrorista, mas isso não faria ele ser eleito Presidente. O negacionismo parece ter um limite na realidade.
A Ditadura Militar aqui passou pelo apagamento da anistia. Só tente imaginar a Europa perdoando todos os nazistas que assassinaram milhões de judeus no holocausto. Se você não consegue imaginar isso, então, sinto muito pela sua falta de poder de imaginação. Aqui no Brasil, homens que arrancavam os dedos de outros homens por prazer de ouvir os gritos e tiravam fotos dos membros decepados para guardar de troféu foram perdoados. Simples assim. Você pode náo conseguir conceber que generais nazistas tenham sido inocentados por matar crianças judias sem dó. Mais uma vez, você precisa exercitar melhor sua imaginação, pois aqui generais que torturaram crianças ao lado de seus pais morreram de velhice sem passar um dia de frio na cadeia. E ainda receberam homenagens em discursos de parlamentares pelo serviço prestado na forma de magníficas torturas. Por Deus, pátria e família.
E nessa realidade imaginada pelos militares, em que eles viveriam impunes depois de matar, torturar, jogar cadáveres em alto-mar, invadir casas e arrancar o filho dos braços da mãe, colocar um capuz em sua cabeça, jogar numa cela, mijar nele, bater, estrupar, mutilar e matar, passariam-se anos e ninguém mais se lembraria do que eles fizeram, porque tudo foi perdoado. E com o perdão vem o esquecimento.
Por esse perdão, somos todos constantemente, diariamente, forçados a engolir a impunidade, de maneira coletiva. Tomamos todos um zolpidem e vamos dormir sem lembrar que existiu um tempo em que generais se masturbavam em sessões de tortura. Porque é mais fácil dormir.
O que não te deixa dormir, por exemplo, é assistir Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Sair da sessão desse filme sem se sentir revoltado pode ser um sinal patológico de falta de humanidade em você. No início do filme, temos as cenas cotidianas de uma família grande e feliz, um pai e marido amoroso, uma mãe cheia de ternura e cuidado com seus filhos, tudo muito iluminado pelo sol do Rio de Janeiro. E mesmo assim, uma sombra dos tempos se esconde em cada canto e vai crescendo em cada cena, até te sufocar. O pai entra em um carro acompanhado por um policial, a família fica refém de oficiais da ditadura em seu próprio lar, e o pai jamais retorna.
O mais assustador desse filme é que essa sombra está bem viva. Ela está atrás do sofá da sua sala. Parece que ainda somos uma família refém da ditadura militar. Nosso pai foi levado pela polícia e nunca mais vai voltar. E se ousarmos perguntar o que aconteceu, somos os próximos a serem torturados. Os velhos anistiados se reúnem ainda em clubes sociais da cidade, tomam um café, fumam um cigarro, se espreguiçam em cadeiras e conspiram por um 8 de janeiro bem sucedido.
Ainda Estou Aqui é uma luz bem fraca que você acende no escuro tentando encontrar aquele monstro horrível que vai se revelar a qualquer momento. Por isso, precisamos encher as salas, assistir este filme, por mais que seja um recorte do sofrimento de uma família carioca de classe alta, é necessário para compor nossa memória, já que nosso governo atual se negou a rememorar o golpe de 64, que completou 60 anos em 2024, por medo da sombra atrás do seu sofá, do captor da nossa democracia, por receio de afrontar os militares, nesse momento político em que generais, almirantes e brigadeiros estão sendo investigados por conspirar contra o estado democrático de direito.
Esse filme precisa da campanha que está sendo feita pela SONY para indicação ao Oscar nas categorias de Melhor Filme e de Melhor Atriz para a retumbante Fernanda Torres. Precisa do engajamento que os brasileiros têm nas redes para pressionar The Academy para levar esse filme à maior cerimônia do cinema internacional.
Não podemos mais aceitar negacionistas da ditadura, parlamentares que desejam a anistia dos golpistas envolvidos na tentativa de golpe de estado no 8 de janeio de 2023.
Precisamos remexer esse passado que os militares caserneiros querem manter cerrado. Precisamos como sociedade civil continuar nessa construção da memória desses tempos. Precisamos ter vergonha de ter ruas, avenidas, bairros e escolas com os nomes dos presidentes da Ditadura Militar. Todos eles são responsáveis pela tortura e pela mutilação irreparável desse país e do seu povo.
Ainda Estou Aqui é brilhante por trazer uma família terna e amorosa sendo destruída pelas instituições da ditadura. A história é real e dolorosa. Se a família abastada sofreu, tente imaginar o arrocho sofrido pelos mais pobres, que não podiam reclamar, sempre sob a mira da polícia da ditadura.
Não podemos esquecer. Não podemos perdoar.
Vamos acender outras luzes e lançar holofotes para encarar esses monstros de frente. Ainda Estou Aqui é um filme magistral que mostra uma face desse tempo, do desespero que era buscar guarida no direito e encontrar indignação. A mãe e mulher que foi Eunice Paiva, na interpretação de Fernanda Torres, passa o sentimento de ser cativo do tempo, de sofrer na pele as violações de garantias que pareciam ser comuns e estendidas a todos, e são retirados sem qualquer explicação. O direito de questionar: onde está meu marido, o pai dos meus filhos, a pessoa que amei uma vida inteira? Para onde a polícia o levou? Quando ele vai voltar? E a resposta vem na forma de indiferença e crueldade. O direito de sacar o dinheiro de seu falecido marido, cuja morte não era reconhecida pela ditadura e, portanto, não poderia haver sucessão de patrimônio. Resta vender um terreno sem papéis formalizados para se sustentar por um tempo. Alugar a casa para um conhecido que não vai se importar muito com a falta da assinatura do proprietário ausente. A magistral Fernanda Torres leva tudo isso às telas. Cada cena parece ser um martírio. Toda dor que sente é calada para tentar manter o mínimo de sanidade e criar seus filhos, sem perder o pulso e continuar batalhando contra o regime militar com as amas que tinha. Mas a dor é palpável nas telas. As sombras dançantes nas cenas vão se tornando assombrosas, até chegar ao ápice durante os dias de cativeiro desmotivado de Eunice nas celas do DOPS. E o horror está ao redor da personagem, como uma serpente esganando pouco a pouco. Talvez se o filme mostrasse as torturas físicas, não seria tão angustiante quanto é ouvir os gritos de dor no escuro. Fica tudo preso na garganta. E quanta força deve demandar manter esse grito de revolta dentro de si.
Que venham mais filmes que mostrem os outros lados da ditadura, os sofrimentos do povo em todas as classes. É preciso debelar a ideia de que havia lugar seguro ou prosperidade na ditadura. Nada veio de bom daquele tempo. E saímos derrotados, com um gosto amargo que vive sendo regurgitado por uns e outros saudosistas de um passado de sangue, conservadores de uma política da morte. A anistia é o selo da nossa derrota.
Precisamos de mais gritos de ódio e de nojo como esse filme.
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