Comentário a Respeito de Bel

 Um relato sobre a concepção do espetáculo “Belchior Vive”




Inácio Saldanha

Oniiverse Podcast



Dias atrás o Paulo solicitou que eu começasse a escrever sobre música. Fiquei pensando sobre o que escrever e parece-me que escrever sobre algo que você faz é mais complexo do que falar sobre algo que você não faz, ao menos, profissionalmente. Aí, nesse meio tempo, toquei juntamente com a minha Orquestra mais uma edição do espetáculo “Belchior Vive". Mais uma vez foi emocionante e me dei conta que deveria falar sobre. Acho que não poderia ser diferente, então, peço licença para lhes contar o que vivi e tudo o que aconteceu comigo durante aqueles 28 dias de março de 2017.


Mas antes, algumas pequenas colocações: Me chamo Inácio Saldanha e tenho 39 anos de idade. Sou, ou ao menos tento ser, músico profissional. Mas minha paixão dentro da Música é escrever, não somente escrever minhas próprias obras mas, principalmente, fazer releituras das obras de outros compositores. Pegar uma obra que, originalmente, não é para orquestra e adaptá-la de acordo com a execução dos instrumentos que dela fazem parte. Muitas vezes (muitas vezes mesmo) escrever dói, porque eu ouço e leio tantas vezes o que está escrito ou tocado que eu passo a encontrar verdades que eu não sabia que tinha dentro de mim. Mas essa dor pode ser fingida de forma tão completa que pode nem parecer ser dor a dor que deveras sinto. Dito isso, vamos a história:


Era dia 30 de abril de 2017, um domingo. Não lembro se ele era de sol ou de chuva, mas isso não importa. O que importa era que estava estranho. 


Arrumei meus filhos para que fossemos para a casa da minha mãe. Eles estavam alegres, mas eu tava sentindo que havia algo estanho. Sinais abriam e sinais estavam fechados, mas aquela sensação estranha estava no ar.

Chegamos ao nosso destino, descarregamos nossas coisas e demos bom dia para o senhor que nos trazia. Alegria, mas ainda uma sensação estranha. “Venha almoçar, meu filho! Você com fome!” perguntava afirmativamente minha mãe. E assim coloquei comida no prato e fui para a sala assistir televisão com meu pai enquanto a gente conversava ao som de um ruído branco de uma tv. Até que surge um plantão que me explicava a sensação estranha.

Belchior se foi. 


E, no centro da sala, diante da mesa. No fundo do prato, comida e tristeza.


Dias antes tínhamos conversado em nossa orquestra sobre a possibilidade de convidar o Belchior para fazer um concerto conosco. E de repente essa possibilidade não mais havia.

Pois Belchior se foi. 


Liguei para o presidente da nossa associação, Cláudio Marques. Disse-lhe que Belchior não estava mais entre nós. Ele, em sua serenidade, lembrou-se da conversa que tivemos dias antes e teve a mesma tristeza que eu. Nesse momento, tive uma epifania:

Precisávamos homenagear o Belchior. Mas como?

Cláudio, sempre tranquilo, me lembra que seria uma tarefa difícil pois não tínhamos nada escrito. A orquestra estava sofrendo pancadas dia após dia e estávamos todos cansados. Não sei o que me deu, mas eu lhe disse:

“Até o dia 17 esses arranjos estão prontos se a orquestra topar”.

Aí ele aceitou a ideia e nos despedimos. Antes de chegar em casa eu já tinha uma devolutiva positiva da orquestra. Porque só tem maluco nesse negócio. 


Aí ao chegar em casa me dei conta de uma coisa: não eram dezessete dias o que eu tinha: era metade disso. Pois todas as manhãs eu só poderia escrever depois do meu filho estar na creche, às 13:30 eu precisava estar na escola que dava aulas duas vezes por semana e só chegava às 22:00 em casa. A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais. Então era hora de me organizar. Eu precisaria definir uma meta.


Eu precisava escrever um arranjo por dia.


Belchior não escrevia melodias simples. A palavra era o principal e dava-se um jeito de elas caberem em um compasso. Em alguns momentos eu sentia que não conseguia escrever nada. Em outros parecia que eu via a partitura na minha frente. Esqueci de comer muitas vezes (não recomendo) e esse concerto só teve os arranjos prontos pois a minha esposa, Loredanna, esteve aqui me ajudando a levantar quando o cansaço me consumia.


Todos os dias eu acordava cedo e colocava a música do dia pra tocar nos meus fones em uma sequência de repetições quase hipnóticas. Entre as minhas aulas tentava pegar alguma melodia de ouvido e, quando chegava em casa escrevia. Até a madrugada riscar a noite como um aviso que estava chegando o dia.

O meu teclado soava como uma velha máquina que maquina máquina. Meus olhos estavam quase que opacos se adaptando à noite. Muitas vezes, descontente, eu gritei silenciosamente em português. Mas eu tinha 34 anos de sonho e de sangue. E sete de Orcec. Esse concerto ia acontecer. E aconteceu.

Olhei pela cortina do palco e a adrenalina disparou. A casa estava cheia. Estávamos cansados, mas nos entregamos. Meus companheiros da Orquestra deram tudo de si. O maestro Paulo Leniuson estava como, se passeando entre nuvens. Meu amigo Jorge Lima, emocionado, solava o três-por-quatro da fotografia e trazia com ele toda uma nostalgia de tempos pretéritos enquanto suas lágrimas caiam. Bach se mesclava com Bel naquele momento.

A Orquestra Eleazar de Carvalho, de volta, estava lá. O público, que tanto sentia sua falta, também estava lá.


E Belchior também estava lá.


Escrevo este breve relato sobre esse dia emocionante enquanto meus filhos brincam na sala. Foi um dia desafiador e tem muita coisa que eu não lembro por agora, pois o tempo andou mexendo com a gente, sim... Mas fica para outros momentos. Momentos onde poderemos ouvir o que tem a “Terra da Luz e Seus Compositores.”


Aliás,

A minha história é, 


Talvez,


É talvez igual a tua.


Comentários

  1. Tenho 47 anos de sonho e de sangue e de América do Sul...e posso dizer que, dentre todos os momentos marcantes da minha carreira, aquele concerto é a lembrança preferida na parede da minha memória!

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