Manas, 2025.


Dir.: Marianna Brennand 

 

O filme Manas (2025) leva à tela a vida dura de meninas e mulheres da Ilha do Marajó, expondo um ciclo de violência e abuso sexual de maneira crua e ainda sensível pela visão de uma de suas vítimas. O filme acompanha a menina Marcielle (Jamilli Correa), de 13 anos, que vive com sua família em condições humildes na comunidade ribeirinha e afastada. Divide a casa e seus poucos cômodos com sua mãe, Danielle (Fátima Macedo), sua irmã mais nova, um irmão mais velho, o caçula e seu pai, Marcílio (Rômulo Braga). Contando com o filho que sua mãe está gerando, a família conta com sete membros, ainda estando ausente sua irmã Claudia, que saiu de casa e foi para o sul, sem sabermos qual o paradeiro da filha mais velha. 

Marcielle divide-se ajudando sua mãe, colhendo açaí na mata e fazendo tarefas de casa. Frequenta a escola e dança em um grupo da igreja evangélica de sua comunidade. Enquanto ouve na igreja que a base de tudo é a família, a maior ameaça a sua inocência vem do pai, Marcílio, que, vendo a menina crescer, começa a tratá-la de maneira que causa desconforto, até culminar com o abuso sexual, que é mostrado como inevitável e parte desse ciclo de violência. A mãe fica calada e amedrontada, em uma atitude perdida entre conivência e conformidade. Não é capaz de se revoltar por medo, por religião, por também ter sido vítima de seu próprio pai e ter encontrado nesse homem uma saída ao seu calvário, mesmo que ele seja a maior ameaça às suas filhas. 

É nojento assistir ao culto evangélico em que a pastora defende a família como a base da sociedade dada por deus e afirmando, como já ouvimos diversas vezes, que os problemas de família devem ser resolvidos dentro da família para manter a união e seguir a vontade divina. O sermão da pastora é o discurso proferido, por exemplo, por Baby do Brasil, afirmando em um culto que, dentro da família, o estupro e o abuso devem ser perdoados para edificar o amor (Do perdão a abusadores ao aborto: as declarações polêmicas de Baby do Brasil - ISTOÉ Independente). Essas cenas somente demonstram a relação que existe entre a realidade da exploração infantil na Ilha de Marajó e a complexidade dos dogmas evangélicos violentos que levam a essas perversidades. O tema já foi utilizado pelo sensacionalismo de Damares, em 2020, que afirmou ter recebido denúncias horríveis de exploração sexual infantil e teve que se desmentir após ser questionada por órgãos oficiais; em 2024, a cantora gospel Aymeê também fez denúncias em um programa de calouros sobre a realidade escabrosa de abusos na ilha, sem qualquer prova ou evidência (AGU pede identificação de redes de desinformação sobre a Ilha de Marajó | CNN Brasil). A maneira irresponsável que essas pessoas exploram a realidade violenta provocou ações da AGU (Advocacia Geral da União) para prevenir desinformação e identificar os reais criminosos que participam das redes de exploração infantil na região. 

Manas trata o tema com sensibilidade e com um realismo cinematográfico enervante. A inocência da Marcielle se esvai a cada minuto que se passa na tela. Tenta buscar socorro em sua mãe e encontra um luto árido que beira à crueldade e culpam a própria criança pela situação vivida. Somente na relação com sua amiga Cynthia (Samira Eloá), também de 13 anos, que já se viu vítima da exploração e tenta encontrar coragem para seguir sua vida e encontrar motivos de se alegrar ao dividir o sofrimento com as “manas” que sabem muito bem como é se sentir usada e traída em seu próprio lar. O conselho da dona da venda parece ser a única solução: viva, cresça e sobreviva o suficiente para sair dali. 

A realidade das manas é de que não existe ninguém por elas além das outras manas. Para Marcielle, quem surge como uma possível rota de fuga é Aretha, a delegada da Polícia Civil vivida por Dira Paes. Aretha aparece como uma mão que socorre Marcielle e tenta protegê-la, mas não tem ferramentas suficientes para tirá-la daquela realidade por si só. A personagem serve mais para demonstrar a dificuldade que o estado e seus agentes enfrentam para adentrar na comunidade e romper esse ciclo de violência que envolve a crença na família vinculada à própria miséria e dificuldade de sobreviver naquele ambiente e circundada pelo contexto religioso, que desampara as jovens mulheres e impõe o silêncio como solução prática. 

O filme foge do realismo ao mostrar a saída que Marcielle toma após ver a pusilanimidade de sua mãe que é incapaz de proteger a filha mais nova, Carol, que se torna o novo alvo do pai. Marcielle toma uma decisão e se utiliza da mata inóspita em que foi vítima de seu pai como cova para enterrar esse agressor e interromper o ciclo violento. Marcielle faz por sua irmã o que ninguém fez por ela. 

É no silêncio da dureza da vida retratada pela lente realista de Marianna Brennand que essa história vem até nós. Não há subterfúgios ao encarar o abandono dessas meninas e a diretora quer que enfrentemos com coragem essa realidade. Sem devaneios sensacionalistas, a narrativa mantém a sensibilidade e a atriz-mirim Jamilli Correa retrata de maneira quase solene essa juventude perdida. A falta de caminhos a seguir e o desespero de tentar encarar uma vida adulta ainda sendo uma criança são fardos muito pesados para uma menina. Somente dividindo com outras manas talvez seja possível fazer essa travessia. 


Por: Damien Maia

 


 

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