Crítica do filme “Nosferatu”
O medo não é da escuridão, mas sim do que nela se arrasta.
“Por falta de um prego perdeu-se a ferradura. Por falta da ferradura, perdeu-se o cavalo. Pela falta do cavalo perdemos o cavaleiro. Sem o cavaleiro perdemos a batalha e, por falta desta, perdemos a Guerra”. Tenho este parágrafo quase que de cor. Digo quase pois suas palavras se esvaem conforme passa o tempo. Desde quando eu era um menino que tinha medo do escuro. Hoje não tenho mais medo da escuridão, mas sim do que nela se esconde.
A razão de escolher começar esse texto através deste parágrafo vem do fato de que a existência deste filme que assistimos se deu através de algo tão caótico quanto o fato de se perder um prego: Murnau, diretor do filme original (Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror - 1922) não possuía os direitos de uma adaptação cinematográfica da obra Drácula, do escritor irlandês Bram Stoker. Mesmo assim “adaptou livremente” o livro para filme, o que gerou todo um imbróglio jurídico que resultou na quase destruição das cópias do filme. Entretanto, por vias oficiais e outras nem tanto, o filme já estava espalhado pelo mundo, o que possibilitou que ele chegasse até nós.
Assim como Drácula, o Nosferatu (também conhecido como Orlok) também possui uma gama de adaptações no decorrer deste mais de um século. Já foi adaptado para praticamente todas as mídias que podemos mencionar. Já apareceu em jogos, filmes, livros, séries e até mesmo em episódios do desenho Bob Esponja. Entretanto, mesmo com as (muitas) similaridades que temos entre os dois vampiros e suas histórias: Drácula deu origem a um ramo evolutivo-midiático de vampiros sofisticados, de ternos com cortes bem feitos, cabelos penteados e de grande sensualidade. O Conde Orlok, por outro lado, é um vampiro sujo. Cheio de escaras abertas e empoeiradas, com o rosto deformado e unhas compridas, com roupas esfarrapadas e um cheiro pútrido. De fato, um vampiro que causa medo, repulsa e paralisia. As duas versões se complementam e se diferem. E as versões de cada uma se diferem cada vez mais. Como quando eu disse que as “palavras se esvaem conforme passa o tempo” no primeiro parágrafo deste texto, as versões podem muito bem ser histórias que foram tantas vezes contadas e recontadas que podem trazer verdades esquecidas por outras, ou até mesmo invenções no caminho.
Nosferatu (2024), adaptação de Robert Eggers, segue uma das principais características do original de 1922, que é a teatralidade. Estávamos em um momento onde o cinema era mudo, e onde as câmeras não possuíam ainda a capacidade de captar as minúcias de uma interpretação. Os gestos e expressões precisam ser exageradas. Os ambientes precisam não ser o que são, mas o que é necessário que pareçam ser para que aquela intenção seja passada. Tudo precisa ser exagerado. Na versão atual temos excelentes câmeras, que captam detalhes até mesmo sórdidos de micro expressões. O que faz o exagero ser mais exagerado. É explorada uma grande tessitura de vozes, sejam elas agudas ao extremo, sejam elas graves. A maneira como as vozes são mixadas traz profundidade. Profundidade essa que acaba potencializando o medo.
Na verdade, não é o medo: é o horror. O medo por si só pode ser domado. Pode até mesmo ser vencido. Mas não o horror. O horror é paralisante, sufocante. O horror drena sua vida, sua vontade, como um vampiro drenaria o seu sangue. No filme original chegamos até mesmo a ter uma quebra um tanto quanto jocosa ao vermos o vampiro correndo com um caixão no meio da cidade, com a luz do sol ao seu redor. Não aqui. Houve um momento que ensaiei um sorriso, mas vou deixar para o final. Fora esse momento (que é relacionado com a minha vivência) o filme me trouxe outras questões relacionadas ao medo.
Como dito antes, a questão não é nem tanto o medo da escuridão, mas sim o que tem nela. E verdade seja dita: nessa obra o que é pra ser escuro é escuro mesmo. Só há cor quando existe uma fonte de iluminação, e essas são raras. Inclusive, a transição de um ambiente colorido para um desaturado é muito bem feita. Meus olhos se acostumaram rapidamente com a falta de luz, com a noite, mas isso não deixou o filme menos tenso.
Um outro acerto dessa versão é não tentar humanizar o vilão ao transformá-lo em um personagem trágico, ou um anti-herói, ou até mesmo em alguma vítima de um mal maior. Não, Orlok é o Mal. Um mal puro, encarnado. O Conde é um escravo dos seus instintos animalescos: chega ao ponto de equiparar o desejo de fome sexual ao desejo de fome de sangue. Por seus instintos ele alimenta sua não-vida, sua luxúria e até mesmo por eles perece. O filme é sujo, as pessoas se entregam aos seus instintos mais profanos… Os fluidos escorrem viscosamente pela tela, mas sem exagero de quantidade. Assim como seria caso o Conde trouxesse sua mazela sobre um povo.
Sobre a forma do monstro, prefiro me abster de explicitar aqui. Só direi que pra mim foi uma surpresa bem vinda. Na primeira vez que a gente consegue entender mais ou menos a sua forma, um detalhe se torna aparente pro restante da película.
Deixo aqui a sugestão para assistir esse filme no cinema. A ambiência sonora e a escuridão são para ser experimentadas da melhor forma possível.
Agradeço, em nome da Oniiverse, o convite que nos foi dado pela Universal, juntamente com o Espaço Z, para assistirmos esse filme. Foi uma excelente experiência.
P.S.: O tal momento é quando Orlok fala para Hutter a frase “Me chame de Lord”. Por sobra de tempo alguém subiu um audio no Youtube. Por conta do Youtube meu filho ouviu. Por conta dele ter ouvido, veio imitar pra mim. E por conta de ter feito isso eu soltei um leve riso em um filme de horror. É, pela primeira vez o primeiro parágrafo de um texto que escrevo conversa diretamente com o final….

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